[Resenha] "Quarenta dias" de Maria Valéria Rezende

Existem muitos nomes de peso na literatura brasileira contemporânea e, apesar de ter lido apenas um de seus livros, me sinto seguro para afirmar que Maria Valéria Rezende é definitivamente um deles.
Em “Quarenta dias”, Rezende constrói uma história com várias bases: a velhice, as relações familiares e o estrangeiro. Estrangeiro enquanto pessoa em um lugar que não lhe pertence, naquele entre-lugar quando não se encaixa na nova terra e já não pertence ao antigo lar.
O livro conta a história de Alice, professora, paraibana, mãe de uma filha que se mudou para Porto Alegre para estudar e acabou construindo não só uma carreira acadêmica, mas também uma família. A ação do romance se desenrola quando a filha anuncia que está grávida e quer levar a mãe para Porto Alegre, para cuidar da criança, enquanto continua com sua carreira. Alice nega inicialmente o pedido, mas quando a filha responde com uma bem tramada chantagem emocional, logo ela cede e de repente sua mudança para a outra cidade se concretiza, fazendo-a perceber-se dentro de um bom apartamento, bem mobiliado. Isso não agrada Alice e quando a filha e o genro chegam com a notícia de que não poderão ajudá-la na adaptação pois precisam viajar a trabalho, Alice decide que aquela não é a vida que ela quer.
Outra reviravolta acontece quando uma amiga da Paraíba liga falando sobre o filho perdido de uma conhecida que se mudou para o Rio Grande do Sul em busca de trabalho, mas parou de mandar notícias. Alice se apega a essa história e a usa como pretexto para criar uma situação em que possa sair de casa, deixando para trás a vida que não escolheu, sem dar satisfação a ninguém.
No começo Alice realmente usa a história do rapaz “perdido”, Cícero, para conseguir se encaixar na cidade. A busca lhe dá um motivo para se descolar da sua realidade e a leva por um caminho desconhecido e excitante. Tanto que, em vários momentos, Alice compara sua história com a de “Alice no país das maravilhas”.
Todas as partes de seus quarenta dias de peregrinação são contadas em retrospecto pela própria Alice, escrevendo à mão a história em um velho caderno da Barbie e em vários momentos conversando com a boneca da capa, demonstrando a solidão que buscava e que por fim encontrou.
Ao longo dos dias, vivendo com o pouco que se permitia sem nunca voltar para casa, Alice acaba percebendo que as pessoas ao seu redor a veem como uma moradora de rua e, para seu espanto, é assim que ela passa a se reconhecer, mostrando a fragilidade dos papéis que assumimos ao longo da vida: professora, mãe, avó, mendiga.
O que mais espanta na prosa de Rezende é a aparente simplicidade. Parece uma história comum, mas quando paramos para refletir sobre o livro, percebemos todos os pilares sobre os quais ele foi construído, tão perfeitamente arranjados que passam despercebidos em um primeiro momento, mas é impossível terminar a leitura sem refletir sobre eles. Rezende mostra também o preconceito embutido nas nossas práticas contemporâneas em cenas muito sutis, tanto quanto a narração de Alice.

Um livro que tem muito o que mostrar dentro da cena contemporânea da nossa literatura, tão cheia de facetas que se torna difícil um livro sozinho chamar atenção dentro da maré devastadora do mercado editorial inflado com livros de youtubers e subcelebridades.

Comentários

Postagens mais visitadas