O Diário de um psicopata - CAPÍTULO 1: Gênesis

- Padre, perdoa-me porque pequei!

_______________________________________

Deus dá a vida com a mão direita para tirá-la com a esquerda, e eu sou à esquerda... Tudo começa assim, padre, na primeira vez que minhas mãos encontraram a morte:


-Paulo, vem cá!
- Oi, mãe.
-Você tirou 8,0 em matemática?
- Foi.
- E você acha que um médico tira 8,0 em matemática?
- Mas...
- Não, um médico não tira 8,0 em matemática. Você vai agora mesmo para o seu quarto e só vai sair de lá quando estiver com seu livro de matemática todo respondido e com todas as respostas certas.


Me chamo Paulo, filho único, filho “perfeito”. Comigo sempre foi assim, “tem que ser”, “você vai ser”. Nunca se importaram em perguntar o que eu queria realmente ser, pra falar a verdade nem eu sei, acho que quero ser o que eles querem que eu seja, acho que quero pra eles me deixarem em paz, na verdade acho que quero que eles morram... Por falar em morrer, sempre me dei bem com a morte ela nunca me assustou. Lembro que um dia, brincando no grande quintal da minha casa, atrás da árvore eu encontrei um gatinho, um gatinho lindo, ele tinha umas listrinhas amarelas e outras brancas. Passei o dia brincando com ele, sempre gostei muito de animais, mas meu pai não, ele sempre dava um jeito de levar meus animais embora e dizia que eles tinham morrido, sempre fingi que acreditei, porque sempre tive medo do meu pai. Minha mãe já estava me chamando pra jantar e eu não queria deixar o gatinho sozinho no quintal, mas em casa ele não podia ficar, porque ele iria “morrer” também como todos os outros. Dei um último abraço nele, um abraço bem forte, ia escondê-lo em baixo do jarro de flores, mas o gatinho não se mexia mais:

- Gatinho?

Acho que o matei, sabe padre, quebrei seu pescoço, não sei, mas o gatinho parecia um boneco de pano agora. Era tão frágil e tão doce, tão indefeso ali, molinho em minhas mãos pequenas, tão pequenas quanto o gato. Não sabia bem o que estava acontecendo, passei um tempo esperando pra ver se ele se mexia de novo, mas nada. Então eu o escondi dentro da minha calça suja de terra e corri para o meu quarto, peguei uma caixa de sapatos velha onde guardava meus poucos brinquedos, já que desde pequeno sempre tive que estudar muito. Sabe padre, acho que uma criança deve ser criança, brincar, correr, pular, se machucar, chorar, esses momentos assim, pra mim, eram raros.
Então guardei o gatinho na caixa e fui tomar banho para jantar, rezando pra que ele ainda estivesse lá quando terminasse, se meu pai o visse era capaz de enlouquecer, e ver meu pai louco não é algo muito agradável, principalmente quando ele bebia, parecia outra pessoa, não quero ser como ele, padre, eu não quero.
As refeições na minha casa mais pareciam um velório, minha mãe pondo a mesa, meu pai de cara emburrada e eu brincando com meus dedos, pelo menos meu dedos eles não poderiam me tirar ou dizer que tinham morrido. Ninguém falava nada a mesa, parecia que todo mundo tinha engolido a língua, eu era um dos principais, aprendi desde cedo a não contrariar meus pais, tive uma educação muito rígida, sabe padre.
Depois do jantar corri pro meu quarto, tranquei a porta e peguei a caixinha que estava em baixo da minha cama. Ufa! Foi um alívio ver que o gatinho ainda estava lá, então fui brincar de novo, quando ouvi passos vindo em direção à porta do meu quarto, era meu pai, rapidamente guardei o gatinho na caixa e a coloquei em baixo da cama de novo:

- Você está estudando, Paulo?
- Sim, pai, estou estudando.
- Ta certo então, sua mãe já me falou do 8,0 que você tirou em matemática, você sabe que não aceitamos isso, estude mesmo, ou você já sabe o que vai acontecer se tirar outro 8,0.

Imagina só, padre. Se isso tudo, essa confusão toda desse tamanho só porque eu tirei um 8,0, imagina se eu tirasse uma nota a baixo de 7. Acho que seria meu fim, apanharia como nunca apanhei na vida. É, minha mãe sempre me batia, não sei por que, padre. Acho que ela queria descontar em mim as surras que meu pai dava nela quando chegava em casa bêbado, e quando não bebia também, acho que ele se sentia bem batendo nela. Meu pai era um daqueles homens conservadores que acreditavam que mulher só servia pra parir, cuidar dos filhos, da casa e pra dar prazer a ele, se minha mãe fizesse algo que não fosse o que ele mandava era surra na certa, e pra falar a verdade eu acho que ela gostava, ou pelo menos se sentia melhor quando me batia. É padre, nós éramos e ainda somos uma família problema, mas só a portas fechadas, na frente dos outros estamos sempre felizes, a mãe perfeita, o pai e marido perfeito e eu o filho bobão perfeito. Achavam que eu era perfeito, aliás, era tudo uma grande mentira, nossa família vivia envolta nisso, mentiras, traições, tristezas...
Depois que meu pai saiu da porta do meu quarto, eu peguei o gatinho de novo e fui brincar de carrinho com ele. Eu não sei bem o que eu sentia por aquele animal morto, acho que era carinho, sabe padre, era tão indefeso ali em minhas mãos, eu poderia fazer o que quisesse com ele. Estava me sentindo Deus, tendo a vida, ou pelo menos o que eu ainda considerava dela, em minhas mãos. Eu deveria estar estudando nesse momento, mas aquela situação me encantava tanto, de ter um corpo em meu poder, eu estava realmente me sentindo poderoso, ao ponto de chegar a esquecer o que meus pais fariam se eu não saísse daquele quarto com toda a matéria de matemática na minha cabeça. Na verdade eles não eram tão severos assim, eles só queriam que eu ficasse à frente da Gabriela a menina mais inteligente da sala. Meus pais e os pais dela não eram muito amigos e nos usavam pra competir entre eles, como se quem tivesse o filho mais inteligente fosse o mais inteligente também, sabe padre. Idiotice deles, pois meus pais eram muito burros e os pais da Gabriela também. Não chegaria a dizer que nós éramos amigos, mas sabíamos bem o que cada um passava em casa, então a gente tinha assunto pra pelo menos não se falar só de “oi”.
Já era tarde da noite e minha fascinação pela brincadeira com o gato ainda não tinha acabado. Mas eu já estava cansado, estava quase dormindo no chão quando ouvi meu pai gritar com minha mãe:

- Você é uma vagabunda, eu te disse que não queria nenhuma das suas amigas dentro da minha casa.
- Fala baixo, Carlos, o Paulo tá no quarto.
- Eu não me importo com aquele moleque, eu quero saber o que meus amigos vão falar se a minha mulher ficar recebendo visitas em casa.
- Mas Carlos, não tem nada demais, são só minhas amigas.
- Cala a boca sua vagabunda, ou você vai apanhar.

Eu sai do quarto e me escondi no fim do corredor, perto da porta do quarto dos meus pais, atrás do jarro de plantas, dali eu poderia ver tudo e eles não me veriam já que estariam mais preocupados em se bater do que em saber se eu estava atrás do jarro ouvindo.
Eu gostava de ver meus pais brigando, padre. Na verdade eu gostava de ver minha mãe apanhando, chegava a achar engraçado e por breves momentos chegava a amar meu pai, por bater nela, sabe. Não sei muito bem porque, mas acho que era porque ela me batia muito, e eu sei que Deus castiga as pessoas que são más, e minha mãe era má comigo, muito má. Uma vez ela estava na cozinha e eu estava brincando no chão, atrás da mesa, eu brincava de carrinho e só porque eu passei perto dela e bati na perna dela e ela levou um susto eu levei uma surra, não havia motivo, mas era sempre assim, ela descontava em mim as coisas que meu pai fazia com ela.
Eu estava lá, escondido e com o corpo do gato na mão, eu queria ver tudo, não queria perder nenhum detalhe:

- Você também não é nenhum santo, Carlos. Ou você acha que eu não sei que você anda saindo com aquelazinha do seu trabalho, hein?!
- Ela é mais mulher que você.
- Você não tem vergonha de falar isso na cara da sua esposa? A mãe do seu filho?
- Eu já mandei você calar a boca, e se eu vou procurar outras mulheres é porque sou homem, gosto de diversidade, e também olha pra você, parece uma empregada.
- Se eu me pareço uma empregada é porque você quer, ou vai dizer que você deixa eu ir ao salão de beleza me cuidar?
- De jeito nenhum, mulher minha não vai à porra de salão de beleza nenhum, pra que? Hein?! Pra ficar bonita pra os seus amantes, é?
- Vai à merda, Carlos.
- Sua vagabunda, você merece uma surra.

Pronto, o espetáculo ia começar agora. Meu pai a pegou pelos cabelos e a jogou do outro lado cama. Minha mãe se levantou bem rápido e pegou o sapato e jogou nele, foi pior, o sapato pegou no rosto dele. Meu pai inxou como um sapo quando a gente joga sal nele, sabe padre, ele ficou vermelho de raiva e partiu pra cima dela, foram bofetões, chutes, puxões de cabelo, ele nunca tinha sido tão violento assim, por alguns instantes achei que ele tinha quebrado o braço dela, ela gritava segurando o pulso, mas os gritos não eram ouvidos mesmo, morávamos em uma rua quase deserta. Eu assistia tudo, agarrado com o corpo do gato, estava feliz, ela merecia, lembrei do dia que ela me puxou pelo cabelo e me chamou de filho do demônio, do demônio padre, eu não sou filho dele, sou filho de Deus, mas na verdade não sei se quando ela me chamou de filho do demônio ela estava se referindo ao demônio mesmo, acho que era a meu pai.
Eles continuaram a se bater, meu pai estava sangrando no nariz, acho que minha mãe bateu nele com o outro sapato, disso não tenho certeza, eles estavam fora do meu campo de visão. Minha mãe não gritava mais, só chorava. Eles estavam cansados, a surra já durava alguns minutos, pra falar a verdade era a mais longa e mais dura que eu já tinha visto, mas eu estava feliz, eles mereciam tanta pancada, na verdade mereciam até mais, se eu tivesse como, eu mesmo os mataria de pancadas.
Mas agora eles tinham parado, estavam cansados e muito machucados, mas ainda não tinha acabado, não, faltava a melhor parte, pelo menos pro meu pai. Ele era possessivo, sabe padre, adorava estuprar a minha mãe, pois é, a própria esposa, pra você ver padre, éramos uma família podre, uma família que não seguia as normas de Deus, uma família que não era feliz.
Ele arrancou as roupas dela e a obrigou a transar com ele enquanto ele a espancava mais, eu como sempre, assistia a tudo de camarote, mas estava cansado e como sabia o fim daquela estória toda, fui dormir.
Passaram-se alguns dias, na verdade, se passou uma semana e eu ainda estava com o corpo do gato escondido no meu quarto, brincava com ele todo dia, dava banho, escovava o pêlo, mas quase todo o pêlo já tinha caído. Eu era muito solitário, padre, não tinha com quem brincar, e agora eu tinha, tudo bem que o gato não se mexia mais e que nem podia correr por aí, mas era um brinquedo, e eu não tinha muitos brinquedos.
Sempre que chegava da escola, almoçava e ia correndo pro meu quarto fingir que ia estudar, mas na verdade eu ia brincar. Foram os melhores dias da minha vida, os dias em que eu realmente tive companhia, eu brincava a tarde inteira e esquecia de tudo, dos meus pais, da casa suja já que minha mãe não limpava mesmo, tinha que ser eu.
Mas era um corpo morto padre, ele ia começar a feder e principalmente pelo fato que eu molhava o gato todo dia e tudo mais. Um dia, não sei por que, enquanto eu estava na escola, minha mãe resolveu limpar meu quarto, na verdade eu acho que ela só queria fuçar mesmo, porque meu quarto eu sempre limpava e ela estava desconfiada por eu passar a tarde inteira estudando no quarto e não pedir pra ir ao quintal brincar um pouquinho. Quando ela entrou, acho que não demorou muito pra sentir o mau cheiro, estava forte, mas não sei por que ele não saia do meu quarto.
Quando cheguei em casa do colégio corri pro meu quarto, olhei em baixo da cama e a caixa de sapatos não estava mais lá, me virei e minha mãe estava na porta, parada:

- Paulo, o que você está procurando?
- Meus brinquedos, mãe. Aqueles que eu guardo em baixo da cama
- Você não tema algo pra me contar?
- Não, mãe!
- Então me explica porque você guarda um gato morto em baixo da sua cama?
- Gato? Morto?

A expressão da minha mãe era de raiva misturada com medo e nojo, não sei ao certo, ela tinha os olhos grandes, vermelhos, as mãos tremiam, acho que ela estava prestes a me bater, mas não o fez. O suar corria em sua testa, ela tentava falar, mas eu percebia que ela não conseguia:

- Espera seu pai chegar, ele vai saber que você é um ASSASSINO e que tinha um gato morto em baixo da sua cama, dessa vez quem vai te bater não serei eu, será seu pai.

Minha mãe me trancou no quarto a tarde inteira, meu pai só voltava à noite, ele “trabalhava” o dia inteiro. Passei a tarde pensando e chorando, triste porque tinham levado meu único amigo de perto de mim. Não sei por que meus pais me odiavam tanto padre, eu era um garoto inocente que só queria um amigo, eu só queria brincar, só queria ser criança de verdade.
Aquela foi a tarde mais longa da minha vida, sozinho ali no meu quarto, procurava alguma coisa pra fazer, mas nem meus livros estavam ali, então me sentei na janela e esperei que meu pai chegasse, mas não agüentei, adormeci ali mesmo, estava muito triste e sozinho.
Acordei com a porta do meu quarto batendo, eram meus pais, minha mãe ainda tremia, acho que ela teve um susto ao encontrar o gato em baixo da minha cama, mas também quem mandou ela ir procurar? Quem procura acha, e ela achou. Meu pai parecia muito irritado também e parecia que ele tinha bebido, então eu já sabia que hoje, ali, eu iria apanhar e muito:

- Que história é essa de ter um bixo morto embaixo da sua cama?
- Não sei pai, eu não sei
- Você ta mentindo moleque
- Não tô, eu não sei como ele foi parar lá
- Ta mentindo sim seu assassino – Minha mãe gritou de trás do meu pai

Aquilo me deu muita raiva, eu não tinha feito nada de errado, pelo menos não era errado pra mim, eles faziam coisas bem piores e queriam me castigar por causa de um brinquedo? Pela primeira vez eu não me agüentei, cerrei os pulsos e comecei a gritar:

- Era sim, era um animal morto, e daí? Eu não tenho amigos, não tenho brinquedos, o que vocês queriam? Que eu matasse vocês pra brincar comigo? Porque vocês nunca sentariam e perguntariam se eu queria brincar, só mortos mesmo e é isso que vocês merecem, morrer eu quero que vocês morram.

Meus pai se inxou de novo feito um sapo, partiu pra cima de mim tirando o cinto e começou a me bater, dessa vez era minha mãe que me olhava de camarote e eu podia ver no rosto dela um sorriso sarcástico, ela estava feliz, padre, feliz porque eu, uma parte dela, estava apanhando porque queria ser uma criança de verdade, queria brincar, me divertir. Ela gritava que eu era um assassino, que eu era filho do demônio, que eu não devia ter nascido e isso não é certo padre, os pais devem amar seus filhos e não bater neles.
E aquela palavra ficava ecoando nos meus ouvidos, A-S-S-A-S-S-I-N-O, eu era mesmo um assassino, mas por quê? Eu só queria ser normal, então quer dizer que é normal matar?
Acho que ele tinha acabado já, não sei, fazia algum tempo que eu não estava mais sentindo a dor, acho que meu corpo ficou dormente. Sentia que minhas costas sangravam, minha perna estava muito machucada, e o senhor pode achar que isso foi muito pra uma criança não é padre? Mas era assim que meus pais “disciplinavam”. Minha mãe ria, ria não, ela gargalhava, pela primeira vez meu pai descontava toda a raiva dele e não era nela, ela estava se sentindo muito bem e por incrível que pareça, naquela noite eles não brigaram, acho que eles encontraram uma forma de salvar o casamento deles, botando a culpa em mim. Minha mãe ainda gritava “assassino” e isso ficou na minha cabeça, roendo, corroendo minhas idéias por muito tempo.
Eles saíram do meu quarto e me deixaram lá, nada cruéis, aquilo era normal, ou viria a ser normal pelo menos de agora em diante. Estava sozinho, carente, machucado e confuso, uma criança que não sabia bem o que tinha feito, uma criança que só queria se divertir, mas não foi divertido, pelo menos não como eu esperava...


- Sabe padre, essa foi a primeira vez que matei, mas matei sem saber, não sabia nem o que era a vida, quanto mais o que era a morte, só queria brincar, ser criança, mas matei e isso me rendeu muito sofrimento, pelo menos no começo, enquanto eu não descobria um joguinho novo. Mas ser um assassino não é algo tão ruim assim, não é padre? Afinal de contas, Deus dá a vida, mas também a tira...

Comentários

Postagens mais visitadas