Sophia

Ela atravessou correndo a ponte da entrada da cidade. Tinha esperanças nos bolsos rasgados e um meio sorriso guardado para quando pudesse finalmente descansar. Seus pés estavam pretos da poeira e de toda sujeira do asfalto que grudara enquanto ela percorria todo o caminho.
Estava terrivelmente cansada, mas tinha forças. Tinha esperança de que alguém naquela cidade pudesse vê-la, pudesse ajudá-la. Ela queria uma boa alma e uma boa mente que a socorre-se.
Nem sabia mais há quanto tempo ela estava correndo pelo mundo. Só sabia que um dia acordou e ninguém mais a viu. Achou que tinha morrido e era um fantasma. Mas não atravessava coisas. Conseguia esbarra nas pessoas, mas todos a olhavam como quem olha um vidro translúcido apenas como algo que o separa do que quer ver mais a frente. Idéia boba essa de fantasma, mas o que você pensaria?
Estava terminando de atravessar a ponte, quando viu do outro lado um rapaz que ameaçava se jogar. Ele queria pôr fim a vida e ela não entendeu porque. Enquanto ele queria se matar, ela desejava, com toda a força restante em seus músculos retorcidos, desejava viver, e ele queria morrer, tudo que ela queria era poder ter a certeza de que estava viva. Correu até o outro lado e tentou convencê-lo a não pular. Mas sua voz não saiu. Ficou desesperada. Empurrava e batia no rapaz com toda pouca força que tinha, mas nada adiantava, como os outros, ele nem percebeu sua presença. Ela esforçou-se para gritar e alguns sons guturais conseguiram sair meio abafados. Foi então que ele a percebeu.

- Moça, não adianta. Vou me matar. Sou tratado como louco dentro dessa cidade. Todos tem medo de mim, ninguém se aproxima. Sei que o que faço é o melhor, não só pra mim, mas para todos. Não faço falta aqui.

Ela esforçou-se mais um pouco e conseguiu falar “ajude-me, por favor!”.

- Ajudá-la? Não vê que estou tentando me matar? Você é quem deveria me ajudar. Olhe moça, quem a vê bela assim, nunca imagina o quão egoísta é tua beleza. Eu aqui, tentando me matar e a senhorita só pensa em si.

Sophia não soube o que e não tinha mais como falar.
Ficaram se olhando por um tempo e o rapaz decidiu se jogar. Jogou-se. E Sophia apenas olhou. Não tinha forças para segurá-lo. Então tentou correr novamente.
O esforço e o cansaço de toda a viagem não a deixaram perceber que tinha arranhões e cortes pelo corpo inteiro, alguns já até cicatrizados, pois a viagem que Sophia fazia já durava tanto tempo que nem ela era mais capaz de se lembrar. Mas outros cortes eram recentes e ainda jorravam sangue. E como doíam. Parecia que mil facas quentes, em brava atravessavam sua pele e retorciam-se embaixo dos músculos. Pobre menina. Seu corpo estava esfriando, exceto os cortes que ardiam como se o sangue que brotava de sua derme fosse lava incandescente.
Saiu da ponte e correu pela cidade. Viu uma igreja e pensou que ali alguém fosse ajudá-la. Bateu nas portas e gritou, agora parecia que sua voz reavivara-se na garganta. Mas ninguém saiu. Talvez ninguém estivesse ouvindo e aquele rapaz na ponte fosse apenas uma miragem causada pela dor lacerante que sentia.
Era por volta das cinco horas da tarde e a luz do Sol começava a dizer adeus mais uma vez à Sophia. Quanto tormento. O astro rei não era mais capaz de agüentar. Que imagem aborrecidamente romântica... retiro o que disse.
Em frente a igreja havia um ponto de ônibus. Mas estava vazio. Ficou ali por um tempo vendo a beleza da árvore que dava sombra ao ponto. Era bela. Robusta e gigantesca. Tinha folhas grandes e aconchegantes. Seus galhos eram imensos e acolhiam com carinho os ninhos dos pássaros assustados com o barulho dos carros que possivelmente deveriam passar por ali. Mas hoje não. A cidade parecia deserta. Vejam que menina mais tola, o sangue jorra-lhe pela pele como um vulcão enfurecido, e ela lá, boba a contemplar pássaros tristes.
Sophia continuou a andar e viu algumas casas. Eram antigas e pareciam guardar espíritos e ossadas em suas paredes. As casas suspiravam temores, amores, dissabores, horrores e quantos mais ores você seja capaz de pensar. Mas a dor de seus braços a acordaram de seu sonho de compaixão. Percebeu nesse momento, que um deles estava quebrado. E sentiu mais dor quando seu cérebro associou o osso fraturado à idéia de anormalidade em sua estrutura física. A dor queria avisá-la que algo estava errado e gritava para que Sophia percebesse. Mal sabia ela que Sophia já havia percebido. Mas dores não tem consciência. As vezes acho que as dores são românticas. Só precisam ser sentidas, nem se importam com o resto do mundo. Tese tola, eu sei.
Sophia tentou não ligar para o sinal que seu corpo emitia e continuar. Continuou. Subiu ladeiras e encontrou outra área residencial e só agora percebeu que não bateu na porta das outras casas que encontrara por que a dor em seu braço desviou sua atenção. Bateu nas portas dessas, nas janelas. Gritou. Esqueceu das dores. Mas ninguém a viu, ninguém a ouviu. Sophia desesperava-se mais uma vez. Viu que tudo a sua volta ficava vermelho e achou que fosse o crepúsculo. Mas não era. Seu olho sangrava e tingia tudo a sua volta com um rubro agoniante de fênix que morre e renasce de sua própria dor. Desesperou-se mais uma vez. Não gostava da cor ardente do vermelho e lembrou-se de seu braço quebrado, de seu sangue fervente e das facas rodopiantes embaixo dos músculos. Sophia gritou tão alto que a cidade inteira estremeceu.
Continuou correndo pela cidade. E em todos os cantos gritava, chorava e sentia dor. Mas ninguém a ouvia e agora começava a desconfiar de que a cidade estivesse vazia. Que menina tola. Só agora é que percebe algo tão obvio. Mas lembrou-se das primeiras casas que a dor não a havia deixado pedir ajuda. Voltou. Mancando, pois seu pé direito já estava cortado. Chegou até as casas, mas foi em vão. Ninguém ali. Sophia deitou-se no chão, cansada, e começou a olhar as estrelas. Já era noite. Tentou descobrir por que tudo aquilo acontecia com ela. Porque com ela? Existem bilhões de pessoas no mundo... e agora pensava se mais alguém estaria passando por um momento tão estranho quanto o seu, mas logo decidiu que não. As pessoas são únicas, mesmo sendo donas da mesma essência, aqui, no mundo natural, cada um é cada um. E mesmo que isso acontecesse com mais alguém, talvez ela não as visse, então não teria como saber. Talvez milhões de pessoas estivessem ali “invisíveis aos olhos”. Ou talvez não. Enfim...
Só agora Sophia percebeu que sentia fome, não sede, apenas fome. Viu que ali perto de onde estava haviam algumas goiabeiras e achou estranho, bem no meio da cidade uma árvore frutífera. Mas respeitou a força com que aquele ser vivo se mantinha de pé ali, em meio a tanto concreto. Mas Sophia não tinha forças para subir na árvore e pegar uma fruta.
Depois de um tempo desiludida, decidiu continuar e ouviu um barulho. Identificou-o, era música. Existia alguém ali perto. Correu e encontrou um grupo de jovens que conversavam juntos. Aproximou-se. Não soube dizer de onde vinha a música. Tentou com cada um deles, mas assim como o resto do mundo, ninguém a viu. Então Sophia pensou, que talvez “eles falassem idiomas diferentes” e como Sophia conhecia grande parte, senão todos os idiomas do mundo, ela começou a pedir ajuda em todos os que lembrava-se. Mas foi inútil. Ninguém a viu ali. Sophia desesperou-se novamente e decidiu deixar aquela cidade cega ali. Decidiu continuar sozinha com sua dor-alarme, seu pé cortado, seu braço quebrado, seu sangue fervente e suas facas giratórias embaixo dos músculos. Sophia olhava para traz e sentiu-se abandonada. Sentiu-se sozinha no mundo mais uma vez e se perguntou “como podia alguém em um planeta com bilhões de habitantes sentir-se sozinha?!”. Mas sentia-se. E de fato, a única certeza que posso lhe dar é de que Sophia estava realmente sozinha, pelo menos não teria como ver outras pessoas invisíveis aos olhos e outra de minhas certezas é de que, no mundo inteiro, que cruzaria, ninguém, nenhum ser vivo, seria capaz de vê-la. Sophia estava sozinha.

Comentários

Cleyton Cabral disse…
Valeu, Artfur. Volte sempre então. Abraço.
FOXX disse…
texto maravilhoso
e o layout aqui tb tá lindo
Unknown disse…
Ops, rapaz! Muito obrigado pelas palavras graciosas no comentário sobre Eulália. Creio eu, foi a primeira parte. Há um mistério naquelas palavras...

Pois bem, o seu conto é de uma grandeza lustre. Sabes tecer a história como algo real. Além de poeta, contista!

Parabéns.
=]
Sil. disse…
"Tinha esperanças nos bolsos rasgados e um meio sorriso guardado para quando pudesse finalmente descansar." Gostei tanto...

Que nobre: Literatura! Eu ainda não defini ao que vou me dedicar. Talvez Literatura tb, ou Linguística. Ainda tenho muita coisa pra conhecer nas duas áreas.

:)

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