O som da ilha

Em meus dedos revezavam-se as sensações de dormência, dor e ardência. O suor escorria devagar no meu rosto como que, despreocupado, estivesse seguindo o ritmo de tudo ali. E eu, entrando na dança da ilha, comecei a pensar, vagarosamente, que nada daquilo fazia sentido. Foi quando vi que meus dedos estavam sangrando e foi também quando a dor venceu a luta pacífica contra a ardência e a dormência. Tirei a camisa, devagar, e enrolei em alguns dedos, os que mais cuspiam sangue. Quando a próxima onda se aproximou dos meus pés eu me joguei de joelhos na areia sem pensar que isso poderia machucá-los também, e enfiei a mão na água salgada. Confesso que a dor não foi tão grande e com certeza não foi a pior que já senti, mas como que em uma tentativa de dar sentido a tudo aquilo eu gritei. Tentei achar o motivo pra tudo, e gritei, esperando que a dor fosse esse motivo, mas não era. Acho que na verdade gritei querendo que me ouvissem, vissem que estava sangrando, me levassem para um hospital e eu enfim achasse um motivo: estava em um hospital, por qualquer razão insignificante que fosse. Mas não vi ninguém e desisti de gritar para mim mesmo, nem eu conseguia me ouvir, nem decifrar o que eu pensava. Se a agência de viagens não tivesse me ofertado, sem eu pedir, todas as informações daquele lugar, eu poderia jurar que estava sozinho ali. Mas a sensação de solidão já bastaria. Na minha frente, a cama fria do mar. Atrás de mim, grades de coqueiros feitos de ferro fundido e água com açúcar. A areia não era dourada, pelos menos eu não a via assim. Tinha um tom laranja claro e em certos pontos meu sangue já a havia aquarelado de vermelho suave solúvel em água. O calor sugeria que fosse um espaço de tempo transitório entre manhã e tarde, mas não conseguia mais saber até que ponto o que eu via e o que sentia era de fato o que havia para ser visto e sentido. Em uma das extremidades visíveis da praia a única coisa que se via era o horizonte lateral alaranjado da areia e o azul do céu inutilmente explicado pela ciência. E na outra ponta um espelho que refletia em igual proporção de tamanho, intensidade de cores e distância o lado oposto. Olhei para a areia, joguei de lado a camisa que cobria meus dedos e instintivamente voltei a cavar. E cavei. E sangrei mais. E gritei mais. Parei. Olhei. Cavei. A água do mar estava chegando até pontos mais altos da areia o que me fez subir um pouco mais e cavar mais a cima. Foi só então que senti a ausência do sol. Olhei para o céu a procura de um ponto luminoso que me cegasse e que me desse enfim o motivo pra tudo aquilo, mas o sol não estava lá, mas mesmo assim o sentia. Olhei para o chão, o buraco era pequeno, mas o sangue que escapava de meus dedos mentiam que era uma cratera vulcânica que eu já havia cavado. A areia já tinha um tom de vermelho seco, quase escuro e eu sentia bichos correrem por minhas veias, como cobras, víboras ou qualquer coisa que não tivesse patas, mas pudesse ser menor que tudo isso. Mas o que senti de fato foi o peso de uma mão masculina em meu ombro queimado do sol que se escondeu. Me virei e não consegui identificar os traços do homem, mas sabia que era um homem, pude sentir a presença. A única coisa que eu via era um grande borrão amarelo com alguns pequenos traços de cor preta em algumas partes. O homem correu a mão do meu ombro até meu queixo e o segurou, fechou meus olhos, acariciou minha boca e afagou minha nuca. Eu pude ouvi-lo respirar por uns segundos e senti sua mão pesada na minha. Eu continuava de olhos fechados, porque sabia que devia ficar. Acho que eu finalmente havia encontrado o motivo. Ele caminhava na minha frente, segurando a minha mão, e eu o seguia, acompanhando o ritmo da areia, do vento e do sol, que eu não podia ver, mas assim como o homem a minha frente, podia sentir sua presença. Eu senti a água do mar em meus pés e aquela sensação me invadiu de tal forma que pela primeira vez que eu possa me lembrar eu me senti cheio mesmo que fosse de algo que não tivesse fim, ou que pudesse ser explicado. Continuei segurando a mão do homem até sentir a água atingir meu peito. Não mais sentia a presença forte do ser humano que estava em minha frente, me guiando até onde eu não sabia, e também não sentia mais o sol. Continuei de olhos fechados. Parado. A água no peito. Andei. E fui me sentindo esvaziar devagar, à medida que a água ia subindo em meu rosto e me cobrindo até os cabelos. Eu já estava completamente vazio. Percebi que não precisava de motivos.

Comentários

Caro Arthur, eu já admirava você como poeta e agora o admiro como contista.
Seu conto nos transmite imagens vivas, detalhadas, e esse misto de esperança e dramaticidade nos dá o ponto alto dessa viajem poética.
Lembrei muito de Kafka, nos detalhes ricos expressos no texto.
Grande abraço, sucesso e obrigado pela visita, é sempre um prazer.
FOXX disse…
adorei tb
seus textos sempre são maravilhosos
Adorei, tem um Q de Caio Fernando no seu modo de escrever.

=]

Abraços
@candido_dan disse…
As imagens me vêm de maneira quase espontânea, como se estivesse vendo, ao invés de ler...Sua sutileza nos permite ir além...

Seu admirador insecreto! rs

Abração!

obs.:Gostei da cara nova do blog!
@candido_dan disse…
As imagens me vêm de maneira quase espontânea, como se estivesse vendo, ao invés de ler...Sua sutileza nos permite ir além...

Seu admirador insecreto! rs

Abração!

obs.:Gostei da cara nova do blog!
@candido_dan disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Um comentário petersoniano surge para uma modesta opinião.

Gosto (desde que o conheci escritor) dos seus textos. Já inclusive debatemos sobre a embriaguez divina. Precisamos de novas discussões. Esse jogo com o escritor e o leitor é interessante. O leitor vê novas perspectivas do texto.

Mas sobre o som da ilha. Quase chego a ouvi-lo, ao ler o texto. Lembrei-me de um autor pós-moderno, João Gilberto Noll, com a sua imagem narrativa melancólica, suicida.

Acredito que você tem o potencial de nos transmitir a mundos escusos. Continue assim, fazendo-nos ver que existem versos em nós.

Abraço grande, menino da terra do fogo!

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