Adão

Ele abre a porta da minha casa e me convida a entrar. Põe a chave em cima da mesa que fica ao lado da porta e a segura com a mão direita enquanto me olha com o olho esquerdo e me espera com todo o corpo cruzar a porta. Eu entro e me coloco em pé no que deveria ser a cozinha enquanto ele caminha devagar com passos detetives até o meio da sala e olha para a televisão como um espelho. Se vira e fica de frente aos meus olhos. Me olha. E espera. Eu lembro da virgindade com que vi seu corpo no hospital e ela me parece deflagrada agora. No lugar da sobrancelha direita existe um remendo branco com tons de rosa que aponta para a boca que está amarrada que aponta para o braço direito que está deitado que aponta para o queixo que também está tapado. Ele me olha. E espera. Eu sinto os olhos dele caminharem até meus pés, devagar, cambaleantes e vazios de imagens. Minhas mãos tremem devagar como um terremoto tímido. Ele em pé. Me olha com tal profundidade que desconfio que está olhando para a parede atrás de mim, encarando minha sombra, mais verdadeira que eu. Ele dá a volta na sala com seus olhos pés, devagar, com cautela, e olha o que deveria ser a cozinha. Ou está olhando pra mim fingindo olhar para ela? Sua cegueira proposital me incomoda ao ponto de me fazer continuar parado. Ele em pé. Me olha. Parado. O corpo dele parece exalar uma cor púrpura como ferida cicatrizada que vai se espalhando pela sala e o que deveria ser a cozinha, mas me evita. Ou finge me evitar deixando claro, mas nem tanto, que procura o que há ali quando na verdade quer o que está aqui? Ele em pé. Parece maior do que quando eu o vi embaixo do carro. Do que quando eu o vi se vestir no hospital. Do que quando me carregou como vento, por acaso, mas sábio, até a porta da minha casa. Do que quando tirou a chave do bolso e abriu a porta da minha casa. Do que quando entrou e olhou tudo com olhos recipientes vazios, absortos. Ele parece deflorado. Simplesmente. Minha sombra treme, dançando junto com minha mão, por não encontrar a dele. Objeto transparente. Ele exala sua cor púrpura de cicatriz, ainda com pus. Ele em pé. Parado. Me olha. Parado. O ar parece calmo e tranqüilo enquanto os olhos vazios buscam preenchimento O garoto está em pé esperando o que eu devia dar O garoto está diminuindo está ficando cada vez mais complexo O garoto está olhando agora certamente para o meu corpo Ele me vê Não finge me olhar enquanto foca de fato minha sombra ou a parede E nem finge passar os olhos pelo lugar onde deveria ser a cozinha quando de fato quer me enxergar Ele está me dizendo em silêncio com sua cor púrpura que quer me enxergar Ele me olha clinicamente Fazendo em mim uma lobotomia Chegando até meu cérebro até o que penso agora através



Ele procura a força no pé. Mas não a tem. Ele começa a caminhar com seus olhos. Ele vem devagar ainda fazendo em mim o procedimento cirúrgico. Ele passa por mim. Me olha. Para na porta. Parado. Para de exalar a cor. O pus para de correr e ele, levado pelos olhos, tranca a porta da minha casa e leva a chave.

Comentários

Unknown disse…
O primeiro "nó" dos nós que há em cada um de nós... rs

Denso. Uma característica que tem me atraído bastante nos seus textos é a imagem que vc tem construído.

Adão entontece. Muito bom. Sinto que haverá continuidade... rs
Adão,
uau!
Denso e corrente

[Sinto que haverá continuidade²]

Abraços!
Inteligente, espaço sensivel, parabens!

vou segui lo!
Lucas disse…
tu sabe que adooro adão neh cara?
Unknown disse…
rsrs

Deu pra perceber que haveria continuidade... E parece que não somente eu pensa assim, né? rs

Num olhar semiótico, Adão é a primeira desgraça histórica. Fraqueza, desobediência.

Num olhar poético, o teu Adão rumoriza o teu silêncio.

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