Adão

Consigo ver a luz dele pela parte de baixo da porta, um filete fino de luz. Como se quisesse me dizer que ele ainda está ali. Eu viro a maçaneta e abro a porta. Estava ali... a luz do corredor.

Meus pés se arrastam passando pelo chão da casa e parando em frente à televisão, onde ele estava antes. Eu tento sentir o cheiro dele, ou ver a cor púrpura que exalava de seu corpo em camadas sonoras de respiração. O garoto havia deixado um pedaço muito grande de presença na casa, na parede, no lugar onde devia ser a cozinha. Onde os olhos pés dele haviam fingido que queriam me ver, ali, ele deixou uma grande parte dele. Grande demais para ficarmos os dois, eu e a presença do garoto, no mesmo cômodo. Caminho em direção ao banheiro enquanto tiro a camisa, com a cabeça absolutamente vazia. Tiro a calça, com a cabeça absolutamente vazia e só agora percebo que estou sem banho a dois dias, desde que atropelei o garoto em minha viagem de entusiasmo vergonhosa pelo mundo inteiro sem sair do estacionamento do clube. O chuveiro elétrico não funciona, então tomo banho de água gelada, espremido no banheiro pela presença do garoto, com o braço deitado, a sobrancelha tapada e o olho vácuo. Enrolado na toalha eu quero secar meu corpo na varanda. Puxo uma cadeira e me sento com uma cerveja de um lado e a presença dele do outro. Deixo a cabeça cair e por instantes me sinto dormindo. Em estado de nada. E acordo, ainda em estado de nada. Olhando as luzes da rua em direção ao rastro que ele deixou saindo da minha casa. E me lembro que não sei nada dele, não sei quem é. Não sei quem é! E a imagem do seu corpo, exalando cor me vem à cabeça e percebo que ela está desaparecendo, bem devagar, como que se desfazendo, começando pelos pés, as pernas um pouco arranhadas, o braço deitado, o peito nu, a boca bem desenhada, os olhos vácuo, o cabelo despenteado, todo o rosto lindo desaparece bem na minha frente, em frente à TV, na minha sala. Mas a cor púrpura de ferida continua ali, vindo da parede no lugar onde deveria ser a cozinha. E aquela forte presença continua muito grande dentro daquele local pequeno, dentro de mim. Presença de alguém apagado, que eu nem sei quem é! Ando pela casa desesperado, mas está em todo lugar. A cor está em todo lugar. Ele que não sei quem é... está em todo lugar! Ele está seguindo minha sombra. Respirando em minha nuca. Está em todo lugar. Na frente da TV. O reflexo na tela está lá. Sem corpo, sem rosto, só o reflexo. O chão é só ele. É luz dele. É cor dele. É tudo só ele. Mas quem? Alguém que não sei quem é. É tudo pequeno demais pra conviver com ele ali dentro. Corro. Abro a porta e olho pra dentro da casa, é tudo ele. Só ele. Nada ali sou eu. Mas ele quem? Alguém que não sei! Eu prefiro ficar no corredor, onde há lugar pra mim, eu vejo restos de cor ali, mas poucos. Me cabe. Abro a porta e deito de rosto virado pra dentro da casa. Passo a noite olhando aquela presença, aquela cor, dançar na casa. Dançar em mim. É tudo tão ele. São horas que se passam nele, em apenas minutos. Até o tempo. Até o tempo! Ele. Meus olhos fecham devagar, admirando a presença, só a presença, não lembrança, dele...

Comentários

Sou, apenas, um fã incondicional da Sétima Arte.

Sou publicitário graduado e graduando em jornalismo.

Volto pra ler seu post, com calma.

abs
Unknown disse…
Hoje Adão me consumiu. Tenho dúvidas sobre ele. Tenho dúvida sobre a existência dessa admiração, desse mistério. Onde está, quem é Adão? Estou confuso. Tanto quanto o observador de Adão. rs

Abraço!

Postagens mais visitadas