Adão

Pra sempre isso tudo será vazio. Além do lugar onde deveria ser a cozinha, agora existe o lugar onde deveria estar a televisão. Pra sempre. Vácuo sempre. Meu corpo está cansado com fado de meses nas costas. Das paredes da casa escorre um sumo púrpura, meio ectoplasmico, meio vivo. Eu como sempre tomo banho e enrolado na toalha pego uma cerveja e olho vazios pela casa inteira, lugares onde deveria



Me sento na varanda pra ver o céu, mas as nuvens laranjas não me permitem ver o azul transmutado em preto temporário. Uma nesga de estrela escapa das grades de algodão e ilumina meu peito, sentado na varanda. Meu cabelo balança com o vento e eu lembro de sombras grandes demais para que eu ficasse sentado ali a algum tempo atrás. Meus olhos doem, sinto que estou ficando cego, antes fosse o tato que estivesse perdendo, pois ver já não vejo mesmo, só sinto. E não quero. A rua deveria ser deserta, se não houvesse um menino, pequeno, cabelo escorrido, caído no rosto, brincando com um pássaro morto. Ele joga o pássaro pro alto e ri da maneira como o cadáver desce do céu um pouco pesado. Pensei em absurdo, mas não seria. Absurdo talvez fosse pedir para alguém tão novo deixar de rir, e ver um corpo inútil se transformar em ossos inúteis. Agora, pelo menos, o cadáver é riso de alguém. E o mais importante, o riso de alguém que precisa rir. O riso de alguém que come lixo, de alguém que vai dormir na chuva por não ter um papelão para cobrir a cabeça durante as noites, de alguém que não lê, mas se enrola nas notícias para não sentir frio durante a noite.



O vento frio sobe a varanda de minha casa e entra por baixo da toalha que cobre meu corpo e aquele toque fino, gelado, me excita. Minha cabeça cai para trás, encostada na cadeira, enquanto meu corpo todo começa a congelar em um processo lento de composição musical, de ritmo. Outra vez eu sinto o cheiro, outra vez eu vejo o púrpura, outra vez eu sinto a presença de quem não sei quem é. Meu corpo começa a tremer confundindo frio e prazer. Eu sinto um peso em meus quadris, algo que me puxa e me solta. Puxa e me solta. Puxa e me solta. Algo que me prende à cadeira. O vento vem de leve e desata o nó que segura a toalha deixando meu corpo exposto. A chuva atrevida cai, me molha, escorre pelas valas de meu corpo, esbarra, desvia, e procura tudo mais. Procura tudo. Puxa e me solta. Puxa e me solta. A cor e o cheiro se misturam e sinto tudo em cima do meu peito, descendo, passando pela barriga e pulando até os joelhos depois sentando no chão. O frio me fazendo tremer e o toque rítmico da chuva em minha superfície me faz sentir maior, mais cheio e amplo, me sinto como o mar. Presente, imenso e azul. Me contraiu rispidamente a cada toque da chuva e a cada pressão que aquela presença me faz. Sou todo mármore. Pedra pura. Tremendo. A porta abre e eu escuto passos de olhos vazios. O vácuo completo passa pela casa em formato de homem. Sinto o cheiro. Vejo a cor, mas a presença desaparece devagar e eu me encanto com o vácuo, o vazio, enquanto a chuva aproveita minha superfície e eu todo sou pedra. Aquele rosto que aparece na porta não me é familiar, mas eu sinto o vazio e esse eu reconheço, não lembro, só reconheço. Ele me olha sempre nada e me vê pedra. Joga o corpo na cadeira em frente. A chuva para. E sinto. Enchendo. Ele está enchendo. E se contendo. Tudo pedra agora. Ele está cheio e quer se derramar aqui... Ele olha a chuva atrevida esbarrar em impedimentos do meu corpo, procurando zona erógenas enquanto ele desce a mão pelo peito, escorrega pela barriga marcada, e desliza por dentro da cueca até se encontrar ali também pedra. Meus olhos não conseguem mais se abrir, já que o peso da chuva em mim não me permite ter um segundo que não seja de prazer, mas eu o escuto, não vejo, agora que quero ver, o pulso da respiração dele entontece o ar a minha volta e eu o imagino e vejo um fantasma, sem rosto, sem corpo, só uma pedra em uma mão invisível. Forço meus olhos, quero abri-los, mas a chuva ainda em cima de mim, me leva devagar, e eu gosto, até o gozo, lugar onde ele chega bem antes. Enquanto meu corpo treme de frio misturando prazer ao gelo da chuva, eu sinto o ar se movimentar bruscamente contrapondo o calor do peito dele ao frio da chuva que molha meu corpo. Eu sinto o calor do garoto se levantar, meio cambaleante, e vir até mim, esfriando, cada vez mais frio, até que some quando finalmente sinto o toque final da chuva, o toque frio, descer como uma boca em meu corpo, procurando onde sou pedra. E eu explodo.



Depois de alguns minutos em um estágio de delírio completo, alguns minutos em um estado de satisfação, eu finalmente consigo abrir os olhos quando novamente não consigo ver nada. Eu caminho pela casa que novamente se torna pequena, onde a presença que estava sumindo se torna cada vez mais o lugar inteiro e eu novamente não posso mais ficar ali, me sinto pequeno, satisfeito, mas pequeno. Não penso, abro a porta, deito no corredor, virado para dentro de minha casa e vejo novamente o púrpura ser tudo ali, onde deveria ser tudo eu...

Comentários

Ricardo Aiolfi disse…
seu texto me deixou sem palavras +_+
Rute Beserra disse…
Parabéns pelo texto!
Beijinhos a vc
Dil Santos disse…
Oi Arthur, tudo bem?
Menino, ficou massa demais seu texto heim? Parabéns
HUmm se é melhor, se torna mais convidativo, mais saboroso quando é proibido,
Abraços
:)
Anônimo disse…
Melancólico, inevitavelmente lascivo.
Gostei do texto, especialmente da parte do menino brincando com o cadáver do passarinho.
Adão me deixa confuso, triste, reflexivo.

Esse texto está meio machadiano, mas, sobretudo, clariceano. rs

Adorei.
Inside Me disse…
just taking a look... bjs meus

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