overdose 1

1. o corvo branco


trazia nas asas o vento do mundo
colecionando memórias do tempo

seu canto forte
era doce e amor
que por séculos
foi invisível

achado no quintal
foi comercializado
por aqueles a quem mais conseguiu encantar
amor do canto
adoração

que parou no laboratório
quando tentaram entender a beleza
da força
a doçura

engoliu câmeras em capsulas
que mostraram nada à mais
à força
perdeu penas
emudeceu
pássaro sem voz é nada

    e amor cadê?
se perdeu nas imagens

antes exaltado
hoje
enquanto há esperanças
é cobrado para criar amor

equanto espera quem entenda
ouça
se apaixone
e ame por toda
a vida
seu
silêncio


2. sem nome (1)


eu engoli o futuro
e em dor
ele tomou a forma do meu corpo

o dia de amanhã
está na sujeira de minhas unhas
que encontra o hoje
no vão dos meus dentes

o ontem alojado a eras
no sistema excretor
nasce e morre
todo dia

aos poucos os dias vão
sendo contaminados pelos micróbios do por vir
e o que estava aqui, mas vindo de fora
foi se tornando futuro também
num processo viral
de moléstia anti-biológica


3. sem nome (2)


meu pensamento sabe só
falar errado
não tem
conhecimento
de gramática
vem e fala
rápido
engole
vírgula
e cospe o
necessário
a língua
da vida
aquela que
falo, não
a da minha escrita


4. cuspir


é pra cuspir
eu cuspo

existe em mim
um pedaço grande demais
que não sou eu
maior que eu

mordo aos pucos
corto com os dentes
cuspo pedaços grandes

e nem assim sai tudo

é pra cuspir
eu desisto

não sai de mim

tão grande
e tão sintético
cabe num pronome pessoal
e não em mim
tão patético

é pra cuspir
eu engulo

fico com tudo
mesmo não sendo parte de mim


5. pentagrama

vestido de ar
tomei o caminho de volta pra casa
pisando de pés descanços em uma estrada
com grama sintética de vidro
coágulos de sangue antigo que formam uma massa
estranha
difícil de lavar
e que minha pele está impregnada

tão distante de casa
no meio dos jardins da noite
que calada com o olhar no horizonte
me decompõe no silêncio
e me fere o coração
cada passo sem palavras
me aproxima da solidão

tão distante de casa
em meio à árvores que correm
em sentido contrário ao pássaro de lata azul
que voa no chão
com as asas quebradas

tão distante de casa
e com um sentimento sem nome
num caminho de vidro
com o futuro chorando de fome
abraçado ao passado
também chorando
começam a engolir os próprios braços

em casa
e uma luneta
olho pra frente
mas só vejo uma página
e branco...

vegetando invisível
buscando proteção na linha de frente
d'um exército em guerra
num céu lilás

volto pra casa
com um buraco no peito
sem mais sentir dor
e com as mãos cheias
de uma joia falsa
que chamam de paz

Comentários

Anônimo disse…
Gostei muito disso. Dá gosto de comentar, ainda que eu não tenha ideia sobre o que dizer.
FOXX disse…
gostei mais do sem nome 2
Inside Me disse…
"à força
perdeu penas
emudeceu
pássaro sem voz é nada" esse verso é a metáfora da cara do Brasil hj... =(
Anônimo disse…
Não sei se chegarei à meia noite com alguma palavra, você usou todas elas e a mim resta dizer que antes de você cuspi-las engoli-as todas, saboreei-as, mas talvez adormeça sem conseguir excretá-las, são maravilhosas em seu uso e não devem sair do meu íntimo, pelo menos, não por via retal; a sacanagem final é para lembrar sempre das brincadeiras em sala.
Jaécia Bezerra de Brito disse…
Não sei se chegarei à meia noite com alguma palavra, você usou todas elas e a mim resta dizer que antes de você cuspi-las engoli-as todas, saboreei-as, mas talvez adormeça sem conseguir excretá-las, são maravilhosas em seu uso e não devem sair do meu íntimo, pelo menos, não por via retal; a sacanagem final é para lembrar sempre das brincadeiras em sala.

Postagens mais visitadas