um corte e pronto

Fazia tempo que não gozavamos, assim, juntos. O corpo dele brilha com a luz que entra da janela e fica cada vez mais apetitoso com o vento que bate em seu peito e chega até meu nariz. Perfeito, é só assim que somos. Cada vez que o sinto dentro de mim penso em matemática e como nós dois conseguimos frustrá-la. Aqui, nesse espaço de nós dois, um mais um se torna um completo, nada de dois fragmentos. Ele é todo meu encaixe, e só ele. É bom dormir, temos que trabalhar.

Eu bem que poderia não agüentar toda essa luxúria que tem nosso quarto. Mas não consigo dizer não ao ver o corpo dele em cima de mim. Gozamos de novo e vamos tomar café. Ele tem os primeiros horários, eu tenho apenas os últimos da manhã. Na terça feira nunca almoçamos juntos. Estou em sala e ele em reuniões com alunos. Vou voltar para a cama e dormir mais um pouco, sentir o cheiro dele nos lençóis. Do meu homem. Só de nos imaginar em cima daquela cama eu fico excitado, latejando, quase em estado de pedra. Gozar sozinho não é a mesma coisa, mas mesmo assim ainda é bom. 

A televisão noticia mais um caso de violência. Dessa vez uma filha que mata o pai: “ela ria enquanto atirava na cabeça do pai” (disse a mãe da garota). Perguntada sobre o porquê de ter feito ato tão cruel, a menina respondeu que acha divertido os desenhos onde pessoas morrem, “eu só quis brincar como fazem os desenhos, quando papai acordar amanhã vamos fazer o contrário, ele atira em mim, é divertido”. É um absurdo, veja como estamos, para onde vamos. Nossas crianças acham interessante ver gente morrendo. Isso é um absurdo. Acabamos de receber uma notícia de última hora, 7 foram mortos em assalto a banco no centro da cidade, ao tentar fugir, o assaltante bateu em um carro, matando o motorista, e logo em seguida quando foi alcançado pela polícia o bandido também foi morto.

É realmente um absurdo. Às vezes imagino o que poderia acontecer no sinal, perto da universidade, aquela viaduto escuro. Tenho medo de uma arma, ou de alguém jogar uma pedra em meu carro. Tenho medo de deixar meu marido sair nesse mundo sozinho. Com tantas sombras e tanto mal a cada esquina, é só cruzar o portão do condomínio. Acho que não vou trabalhar hoje, não ia fazer nada de importante mesmo. Acho melhor ligar pra universidade e mandar avisar aos alunos. Aproveito e ligo pra ele pra saber como está. Tenho medo de que algo ruim aconteça.

Já é noite e ele não voltou. Deus, será que aconteceu algo ruim. Ele não atende o celular. Deve estar no trânsito, ou morto. Se ele chegasse em estado grave em um hospital ninguém me ligaria. A mãe dele também não me diria nada. Acho melhor ligar para os hospitais do caminho de casa, quem sabe.

Nada, ele não está lá. Pode estar em uma ambulância presa no trânsito. Deus.

Até que enfim ele chegou. Vamos fazer sexo, assim consigo ver se ele está inteiro.

Gozamos. E nada falta nele. Vamos jantar. Menti que estava indisposto, por isso não fui trabalhar. Ele não se mostra preocupado. Ali jogado no sofá, assistindo ao jornal: bandidos foram mortos em tiroteio com a polícia.

É melhor fechar as janelas. Alguém pode pular o muro do condomínio. Não sei, tenho medo. Tenho medo de que alguém possa fazer mal a ele. Tenho medo de que alguém o machuque. Eu não posso deixar que nada de ruim aconteça a ele. Eu preciso fazer alguma coisa. Eu sou o marido dele, o responsável por ele. Preciso cuidar dele. Não vou deixar que ninguém o mate. Prefiro vê-lo morrer pelas minhas mãos do que pelas mãos de outro. Eu o amo. Os outros não. Uma faca. Será rápido. Ele estará seguro depois. E eu o terei salvo do mal além daquela porta. É isso. Só um corte e pronto.