Achou as árvores do pátio do condomínio lindas. Eram de verdade, lindas. Chegou pela manhã. Eu havia preparado um almoço, lembro que sempre gostamos de comer muito e bem, tanto que quando saímos da adolescência começamos a engordar e ele me propôs exercícios físicos, para trabalhar o corpo, “ficarmos irresistíveis”. Eu tinha muita preguiça, mas gostava do ambiente da academia. Gostava do pseudo-amor-próprio que se cultivava por ali. Eu me sentia infectado por tudo. Além de ser infectado pelas micoses, eu era infectado pelo falso amor próprio. Ele era bem mais bonito que eu, e conseguiu ter uns quatro caras da academia, eu só consegui um. Ele dizia ter inveja da minha inteligência, eu tinha inveja do corpo dele, bem mais modelado que o meu, “não vou comer ninguém com minha massa cinzenta, as pessoas transam com seu pau e não com sua filosofia”. Ele ria, sabia que era verdade, sabia que eu tinha inveja do corpo dele. Menos da bunda, a minha era maior. Mas nem era o que interessava nisso tudo. Tinha um rosto lindo, era invejado mesmo. Fazia uns dois anos que não nos víamos e eu o convidei para passar um fim de semana na minha casa. Veio. Fiz o almoço. Comemos e rimos muito, perguntou pelo meu namorado, disse que não tinha tempo para isso. Mentira. Ele me disse. Havia conhecido um carinha pela net, e perguntou se podíamos recebê-lo na minha casa. Claro, sem problemas. Vinha à tarde, depois das três. Eu tinha um quarto a mais. E eu morava sozinho, sem problemas. Ele parou um pouco na minha biblioteca. Viu Caio, disse que já tinha ouvido falar sobre ele, mas nunca leu nada. Pedi que lesse um conto, rápido. E ele disse que se excitou. Rimos muito. Era bom estarmos próximos novamente. Pensei muito, nesses anos que moro sozinho, sobre o que é a amizade depois da adolescência. Nem parece ser a mesma coisa, o mesmo sentimento. Mas ele trazia algo de antigamente. Eu cresci rápido, bem antes que ele. Me modernizei rápido e ultrapassei isso mais rápido ainda. Era um ser meio homem, meio livro, meio computador. Pós-moderno, como o cara do laboratório que eu peguei quando cheguei aqui me disse que eu era. Sofria muito, eu sofria mesmo. Mas depois do terceiro assalto isso passou. No quarto assalto eu gostei. Vi que o assaltando estava excitado e eu entendi que, pelo menos para aquele, roubar alguém era mais que maldade ou necessidade, era prazer mais que sexual. Ele gostou de Caio. Achou lindo. Mas disse para me agradar, viu que eu lia muito sobre ele. Aliás, sempre foi assim. Ele fingia interesse no que era meu para me agradar. Sabia que eu já me sentia estranho demais diante de todos. E sempre me senti mesmo. Nunca disse a ele que eu sabia que ele era mais um daqueles que me achavam estranho. Gostava da amizade dele e só de ele fingir que não me achava estranho isso já era muito. Ele não mudou nada. Só está mais bonito. O cara chegou, eu tinha vinho. Bebemos e conversamos um pouco. Saí para o meu escritório/biblioteca para deixá-los sozinhos. Eles foram para o quarto e eu fiquei no janelão da minha sala que dava para as árvores bonitas do pátio. As crianças passaram e riram, falaram comigo. Eu era uma boa pessoa dentro daquele condomínio. Eu e o vinho éramos. Eu e Caio, que fui ler. Eu era uma personagem dele. Idêntico. Se ele tivesse me conhecido, me beijado, certeza que eu estaria em um dos contos dele. Certeza. Na praia, nu, algo assim. Fui na cozinha pegar outra garrafa de vinho e escutei eles dois. Estavam muito bem. Voltei para a minha sala e voltei a ler e o vinho. Não lembro quanto tempo eles passaram fodendo, mas ele veio assustado, parecia meio drogado, “ele cortou meu dedo, porra, ele cortou meu dedo”.

Comentários

Anônimo disse…
Que final trágico, como haveria ele ter cortado o dedo?

“não vou comer ninguém com minha massa cinzenta, as pessoas transam com seu pau e não com sua filosofia”

Sinceramente, não concordo muito... sou uma daquelas que preza pelo conteúdo: não que um bom corpo não seja elogiável, mas o papo é tudo, tudo, tudo...

Em relação ao Caio, gosto muito dele, tem até algumas frases do Ovo Apunhalado das quais não desgrudo:

"Um toque frio e ao mesmo tempo quente, ao mesmo tempo forte e ao mesmo tempo leve."

"Flor e abismo. Ou seria: flor é abismo? Não lembro."

Gostei da intensidade de seu conto :)

beijos

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