Horizonte industrial


Então saíram os quatro, não parecia que se amavam. O preto ia muito à frente, com o telefone tocando, tentando não falar alto para que os outros três (um deles, eu) não ouvissem. Não adiantava muito, os gritos de dor que ele dava toda vez que pensava em falar eram audíveis em outra vida. E parecia que rastejava pelo caminho, mas também parecia que era tudo mentira, apesar de se poder ver exatamente como sofria e era triste, mas ninguém podia ajudar. Até que ele simplesmente sumiu e a única coisa que sobrou foi seu choro, perseguindo-os por todo o resto de vida. Pararam num bar sujo e pediram comida, na verdade só precisavam parar e talvez de um cigarro. Não dá pra entender muito bem como, as linhas estavam confusas, mas quando ele percebeu os outros dois já estavam muito a frente e ele em pé em outro lugar, com o prato cheio de comida na mão com pessoas sentadas ao redor, como esperando que ele fosse algo importante. Já se sentindo uma grande escala de cinzam estendida, bem maios do que a conhecida, ele era uma pintura morta em P&B, uma natureza urbana, uma civilização toda devastada, isso num peito só. Pediu licença a uma senhora com filho para deixar ali o prato que já não o satisfazia mais, e ela só o deixou ir embora depois que lhe comprou tudo aquilo. Ele sabia que ela queria bem mais, sexo, talvez, não para ela, claro. Talvez para o filho muito acanhado e grande, um ser já sofrendo desde dentro que trazia para o mundo toda vez que respirava uma dose superior de veneno. Uma pessoa. Quando ele conseguiu se livrar da roda de espectadores dementes e pular o grande bloco de concreto que ali tinha, colocando-o no meio de umas árvores estranhas, retorcidas, pedindo alento, já viu os outros dois muito distantes, conversando com as mãos para não chorar como o primeiro. Se livrou das árvores no caminho e tudo, então, eram ladeiras. Ainda se ouvia o choro do primeiro e as mãos dos outros dois cortando o ar, mas ninguém estava ali. Era um bairro sujo, meio colorido, mas muito borrado. Subiu muitas ladeiras até chegar num lugar plano, com pessoas plantadas olhando-o como se ele fosse demais. Era um cruzamento com terra mexida. Um grande buraco perfeito bem no meio do asfalto quando as quatro ruas se cruzavam. Queria pedir informação, mas não queria derramar sangue e nem pretendia toda a vida perfeita que viria de brinde. Queria saber se alguém teria visto uns dois controladores de tempo passando conversando com as mãos ou um outro perdido que chorava guerras. Mas acreditou que ninguém ali falaria. Todos poderiam olhá-lo por horas, como se estivessem tentando roubá-lo de alguma coisa que ele não acreditava que possuía. Foi quando viu alguns ônibus passarem e ele correu para o lado errado da rua, o lado em que não passavam, mas algumas pessoas ritualizavam um sinal fixo de chamada, tentando pará-los. Pegou o celular e tentou mandar mensagens, ninguém falaria. Quando percebeu já estava em cima do ônibus amarelo enferrujado, com pessoas olhando-o como se ele estivesse errado desde três vidas passadas. Externou alguma coisa, como se dissesse que estava mesmo errado, então desceu, ajudando uma mulher muito jovem e ouvindo o choro do primeiro dizendo que não, que não. Voltou para o ponto de ônibus, mas já era uma pequena venda em que todos esbarravam nele, sempre pedindo licença, e sempre com muita sede. Todos queriam uma garrafa de água que estaria para sempre atrás dele. Ouviu três apitos longos, vindos da frente. O celular virou pó. O choro calou e o vento parou. Ele estava sozinho, então. Uma solidão meio mecânica, industrial. Alguma coisa já tinha começado a engolir seu braço, e dali nada sobraria, só a paisagem continuaria morta. E uma gota de sangue dele, manchando o cenário, imaculando a desordem. Como uma nova oposição eterna.

Comentários

FOXX disse…
uau, bem surreal.
Fred Caju disse…
No uau eu concordo, mas será que tão surreal?
Jaécia B. Brito disse…
E no meio da rua uma mulher assobiou, como se pudesse assobiar, por entres dentes, ela também estava extenuada e as vozes confusas respondiam ao seu silvo, degringolou-se na calçada alta e chamou pela chuva, assim matou a todos os desejos de solucionar o injustificável. Te amo, Tutu.

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