Dois Irmãos, Milton Hatoum
“Dois irmãos” é considerado pela crítica especializada um dos melhores romances brasileiros da atualidade. É um livro que supera expectativas, mas vou arriscar o motivo: Hatoum não subestima seus leitores. A história, apesar de ter como “gancho” principal a relação conflituosa entre os irmãos Omar e Yaqub, não gira só ao redor desses dois personagens. Na verdade, a história é centrada muito mais na influência que a relação desses dois personagens ocasiona nos outros integrantes da família: Halim, o pai; Zana, a mãe; Rânia, a irmã e Domingas, a agregada e empregada da família e seu filho. Começa com o fato de que a história é apresentada por um narrador em primeira pessoa que só se “mostra” (se dá a conhecer de fato) depois de decorridas cinquenta páginas do relato e de toda a história ter iniciado. Sabemos, então, que quem narra é o filho de Domingas (só saberemos seu nome muito tempo depois, contado de uma forma extremamente honesta, sem parecer uma obrigação narrativa).
Os irmãos, gêmeos, se odeiam desde a infância, pois tinham personalidades muito divergentes. Tudo se agrava quando ambos se interessam pela mesma menina e Yaqub consegue beijá-la em uma festa no porão da vizinha. Omar, meio enciumado meio humilhado (é assim que o narrador faz parecer de fato) rasga o rosto de Yaqub. A família sente medo da relação dos irmãos e resolve mandar Yaqub para morar com a família numa aldeia no Líbano. Sim, parece absurdo exilar um filho assim só por medo da relação dele com o irmão, mas lhe adianto que este livro é composto de uma série de escolhas péssimas por parte dos pais dos gêmeos. A mãe, Zana, não permite que Omar vá também, pois tem medo que ele se machuque, alegando que o filho é muito frágil. A partir daí, a superproteção de Zana com Omar leva as coisas a níveis muito ruins.
Quando Yaqub volta, anos depois, ele e o irmão já são estranhos e o ódio que sentem é mutuamente cultivado. Muitos conflitos acontecem ao longo da narrativa que inflamam essa relação. Aí vem um grande diferencial da narrativa: não existe um gêmeo bom e um gêmeo ruim. Os dois têm personalidades muito diferentes: Omar é abusivo, fanfarrão, malicioso; Yaqub é orgulhoso, não mede esforços para conseguir o que quer e não tem medo de abandonar todos. Ao longo da narrativa a família sente pena de um ou de outro, sem entender propriamente quem é culpado de que na história dos irmãos; o leitor é levado junto, ora simpatiza com Yaqub, ora com Omar.
O fim da narrativa é trágico, mas não porque aconteceu algo trágico necessariamente. Esta é uma história familiar, extremamente sedutora, porque pode ser real. A profundidade dada às personagens faz com que o leitor se familiarize com cada uma delas. Desde o distanciamento da família que Yaqub almeja à atitude extremamente passiva e condescendente de Zana com Omar.
Além disso, Hatoum cria uma trama temporal muito bem desenvolvida, mesclando casos particulares da família com a situação histórica de quando a narrativa acontece (fim da segunda guerra mundial e início da ditadura militar brasileira). Apesar disso, esse cenário político não é trabalhado de forma exagerada. Existem momentos, inclusive, que é possível esquecer da influência da ditadura militar, já que ela quase nunca é enunciada pelo narrador, o que, para mim, demonstra a incrível capacidade que Hatoum tem de criar personagens verossímeis.
Por fim, eu ressalto o cuidado com os pormenores da narrativa que Hatoum demonstra. Hoje em dia, na era das sagas literárias e da necessidade de colocar no mercado um livro por ano, ler um livro realizado com cuidado é algo refrescante, quase orgástico, mesmo. (Não estou criticando as sagas literárias. Eu mesmo sou um grande fã de sagas. Mas até os próprios autores sentem a pressão do mercado editorial por novidades e percebem que isso, às vezes, pode influenciar na qualidade do trabalho de escrita. Como exemplo, sugiro que leia a resposta que o Neil Gaiman deu a um leitor do seu blog ao perguntar o que o escritor achava do George R. R. Martin ainda não ter terminado o sexto livro da saga das Crônicas de gelo e fogo).
Sim, esse é um dos melhores livros que li, mas não foi o melhor livro que li em 2015. Sobre este livro ainda falarei em breve.
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