Dois Irmãos, Milton Hatoum

Imagine quantas histórias sobre irmãos que se odeiam você já leu/ouviu/conheceu na sua vida. Foi o que pensei sobre este livro. Mas desde o começo, eu dei um crédito imenso ao autor. Já havia lido um livro de Milton Hatoum antes, chamado “Relato de um certo oriente”. Ouvi falar do autor ainda na faculdade, com muito entusiasmo. O que posso dizer, agora, das narrativas de Hatoum é: exóticas. Primeiro, porque se passam no norte do país, no Amazonas, tendo Manaus como pano de fundo, a floresta, a mistura do português com outras línguas nativas e não nativas. Segundo, porque a maioria das personagens de Hatoum são imigrantes ou descendentes de imigrantes libaneses. A mistura de duas culturas, uma nacional e outra internacional, porém ambas desconhecidas minhas, tornaram as narrativas muito, muito excitantes.
“Dois irmãos” é considerado pela crítica especializada um dos melhores romances brasileiros da atualidade. É um livro que supera expectativas, mas vou arriscar o motivo: Hatoum não subestima seus leitores. A história, apesar de ter como “gancho” principal a relação conflituosa entre os irmãos Omar e Yaqub, não gira só ao redor desses dois personagens. Na verdade, a história é centrada muito mais na influência que a relação desses dois personagens ocasiona nos outros integrantes da família: Halim, o pai; Zana, a mãe; Rânia, a irmã e Domingas, a agregada e empregada da família e seu filho. Começa com o fato de que a história é apresentada por um narrador em primeira pessoa que só se “mostra” (se dá a conhecer de fato) depois de decorridas cinquenta páginas do relato e de toda a história ter iniciado. Sabemos, então, que quem narra é o filho de Domingas (só saberemos seu nome muito tempo depois, contado de uma forma extremamente honesta, sem parecer uma obrigação narrativa).
Os irmãos, gêmeos, se odeiam desde a infância, pois tinham personalidades muito divergentes. Tudo se agrava quando ambos se interessam pela mesma menina e Yaqub consegue beijá-la em uma festa no porão da vizinha. Omar, meio enciumado meio humilhado (é assim que o narrador faz parecer de fato) rasga o rosto de Yaqub. A família sente medo da relação dos irmãos e resolve mandar Yaqub para morar com a família numa aldeia no Líbano. Sim, parece absurdo exilar um filho assim só por medo da relação dele com o irmão, mas lhe adianto que este livro é composto de uma série de escolhas péssimas por parte dos pais dos gêmeos. A mãe, Zana, não permite que Omar vá também, pois tem medo que ele se machuque, alegando que o filho é muito frágil. A partir daí, a superproteção de Zana com Omar leva as coisas a níveis muito ruins.
Quando Yaqub volta, anos depois, ele e o irmão já são estranhos e o ódio que sentem é mutuamente  cultivado. Muitos conflitos acontecem ao longo da narrativa que inflamam essa relação. Aí vem um grande diferencial da narrativa: não existe um gêmeo bom e um gêmeo ruim. Os dois têm personalidades muito diferentes: Omar é abusivo, fanfarrão, malicioso; Yaqub é orgulhoso, não mede esforços para conseguir o que quer e não tem medo de abandonar todos. Ao longo da narrativa a família sente pena de um ou de outro, sem entender propriamente quem é culpado de que na história dos irmãos; o leitor é levado junto, ora simpatiza com Yaqub, ora com Omar.
O fim da narrativa é trágico, mas não porque aconteceu algo trágico necessariamente. Esta é uma história familiar, extremamente sedutora, porque pode ser real. A profundidade dada às personagens faz com que o leitor se familiarize com cada uma delas. Desde o distanciamento da família que Yaqub almeja à atitude extremamente passiva e condescendente de Zana com Omar.
Além disso, Hatoum cria uma trama temporal muito bem desenvolvida, mesclando casos particulares da família com a situação histórica de quando a narrativa acontece (fim da segunda guerra mundial e início da ditadura militar brasileira). Apesar disso, esse cenário político não é trabalhado de forma exagerada. Existem momentos, inclusive, que é possível esquecer da influência da ditadura militar, já que ela quase nunca é enunciada pelo narrador, o que, para mim, demonstra a incrível capacidade que Hatoum tem de criar personagens verossímeis.
Por fim, eu ressalto o cuidado com os pormenores da narrativa que Hatoum demonstra. Hoje em dia, na era das sagas literárias e da necessidade de colocar no mercado um livro por ano, ler um livro realizado com cuidado é algo refrescante, quase orgástico, mesmo. (Não estou criticando as sagas literárias. Eu mesmo sou um grande fã de sagas. Mas até os próprios autores sentem a pressão do mercado editorial por novidades e percebem que isso, às vezes, pode influenciar na qualidade do trabalho de escrita. Como exemplo, sugiro que leia a resposta que o Neil Gaiman deu a um leitor do seu blog ao perguntar o que o escritor achava do George R. R. Martin ainda não ter terminado o sexto livro da saga das Crônicas de gelo e fogo).

Sim, esse é um dos melhores livros que li, mas não foi o melhor livro que li em 2015. Sobre este livro ainda falarei em breve.

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