Resenha: As rãs, de Mo Yan

Olhando de fora, é difícil entender a organização política de países como a China. Isso porque, quando ouvimos relatos, nos parece que não há unanimidade sobre a aceitação do regime socialista. Mas qual regime que tem aceitação em massa?


Talvez uma das características mais fortes do governo socialista da China seja a tão famosa política do filho único. Limitar a quantidade de filhos que um casal pode ter parece um nível de intromissão mais do que o desejado do governo na vida dos seus cidadãos. Entretanto, a superpopulação da Terra não é assunto apenas da ficção científica. Muitos cientistas se preocupam com isso (indico, inclusive, ler “Inferno”, de Dan Brown, sobre o assunto), assim, um governo socialista, popular, se preocupar com a população de seu país e a capacidade de gerar alimento e renda para todos os seus cidadãos não parece tão absurdo.


O tema é delicado. E é sobre ele que “As rãs” trata. Esse livro me foi indicado por um dos vendedores da livraria Leitura (uma das melhores na minha cidade) e eu fiquei com o pé atrás. Eu não buscava por algo tão político assim, mas ele me garantiu que eu iria gostar, então comprei (confio na palavra dele).


Não deu outra: o livro me arrebatou do começo ao fim. Numa mescla de capítulos curtos narrando episódios que, aparentemente, não têm relação com a trama principal, com capítulos mais longos em que Mo Yan desenvolve muito bem a ambientação e as características das personagens, o romance de quase 600 páginas exala uma aura ao mesmo tempo forte, dura e simples, folclórica e sutil. Acreditem, atingir isso na linguagem não é nem um pouco fácil.


A narrativa começa com uma carta do narrador Girino (ou Wan Perna, ou Corre Corre) para um professor que lhe pediu para escrever sobre sua tia, a chefe do departamento de ginecologia e a organizadora e mantenedora do departamento de controle de natalidade da aldeia de Gaomi, onde grande parte do romance acontece. Girino, então, começa a escrever um material que é misto de memória, misto de pesquisa para uma peça que ele pretende escrever.


Conhecemos então a tia de Girino, Wan Coração (quase todos os personagens têm nomes de partes do corpo. Segundo o narrador, é uma tradição da região), uma mulher forte, muito comprometida com os ideias socialistas do partido que tanto ama e que não mede esforços para defender. Logo no início da narrativa ela chega a ser tida como traidora do regime socialista, mas consegue comprovar sua inocência e segue como uma das mais fortes agentes do governo (mesmo que nunca chegue a ocupar um cargo alto na política do país, cargos esses que ela trata com um certo escárnio, pois julga que quem os ocupa esquece do que de fato o país precisa). Wan Coração é a responsável pelo lado duro e político do romance, desenvolvido muito bem para não parecer panfletário (nem contra nem a favor), apenas observador, ajudando o leitor a construir um senso crítico sobre tudo, mas sem, necessariamente, afirmar ou impor nada.


O governo, preocupado com o crescimento da taxa de natalidade, implanta uma política de controle, que impede casais de terem mais de um filho homem e de terem apenas mais um filho caso o primeiro seja uma mulher.


Obviamente, a China da época do romance (em torno de 1950-1960) ainda é muito enraizada nos costumes populares e acredita que a família precisa deixar o máximo de descendentes possíveis. Claro que a política do filho único iria encontrar dificuldades para ser implantada. Mas Wan Coração é muito destemida e não tem medo de dissuadir os homens e as mulheres que engravidaram fora do planejamento de que o aborto é um ato patriótico. Aqui entra o conflito do romance: a política que controla a vida íntima da população visando um bem maior, e as tradições de um país ainda muito ruralizado. Esse contraste não é constante, mas quando surge cria um efeito muito semelhante ao de “Cem anos de solidão”, de Gabriel Garcia Marques (apesar de que em “As rãs” não exista realismo fantástico).


A medida que Girino vai narrando a vida da tia à frente do planejamento familiar, mescla fatos de sua vida, como seu primeiro casamento que termina tragicamente. O professor, destinatário do material, pede para ler mais sobre a vida de Girino. A partir daí, a tia fica um pouco em segundo plano. Entretanto, o papel formador da figura de Wan Coração nas crianças que nasceram na região de Gaomi é forte (todas essas crianças nascidas pelas mãos dela) e dessa forma ela permanece presente na narração.


Alguns acontecimentos trágicos dão andamento ao final do livro (não falarei quais). Ao fim temos então em torno de 100 páginas de um texto teatral escrito por Girino: a peça que ele pretendia escrever desde o começo da troca de cartas com o professor. Nesse momento, achei que o livro não poderia mais me surpreender. Mas estava enganado. A peça dá visibilidade a personagens que não estavam tão presentes no romance, criando definições e ajudando a construir ainda mais a figura de Girino e de Wan Coração.


No fim do livro, é impressionante a maneira como Mo Yan conseguiu tratar de um tema tão delicado (que envolve vários abortos e falecimentos decorrentes destes abortos) de uma forma que lhe deixa maravilhado com a profundidade dos personagens e a maneira como a cultura e a tradição estão entranhadas na população de um país (fazendo você esquecer, até certo ponto, do horror do aborto obrigatório no regime político da época).


Lembrando que Mo Yan (que na verdade é o pseudônimo de Guan Moye e significa “não fale”) foi vencedor do prêmio Nobel de literatura, que destacou a força do seu realismo que mescla tradição popular, história e contemporaneidade.

Apenas para concluir, o mesmo ideograma é utilizado para representar “bebês” e “rãs”. Em um determinado momento do romance, mais especificamente na peça que é a parte final, essa “confusão” entre bebês e rãs criaria uma metáfora incrivelmente forte e sensível que, infelizmente, se perde na tradução. Apesar disso, a tradução é muito bem feita e a edição da Companhia das Letras não pecou em nada na minha experiência de leitura.

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