Diário

Respinguei perfume nos pulsos, um pouco no pescoço e me sentei na cama, olhando o céu pela fresta da cortina que cobre a grande janela do meu quarto. O dia ainda não nascera completamente, mas eu já deveria ter saído de casa. O dia não nascera ainda e eu já estava atrasado. Desde a noite anterior eu estava atrasado, da noite que não dormi, da noite que não me lembro bem, porque o dia nem nascera ainda e minha cabeça já explodia tanto de dor que eu nem me lembrava da noite que passei em claro.
Fiquei sentado com minha mochila nas costas, pronto para sair de casa, mas sem poder. Não poderia, não existia possibilidade de sair. Faltava algo para que eu pudesse sair. Ao mesmo tempo não faltava. Me levantei correndo e fui vomitar no banheiro, uma dor na cabeça e outra no estômago e outra na alma? Não sei, eu não conseguia pensar. Estava exausto sem me lembrar porque. Voltei a sentar na cama e agora o céu já era um pouco azul, mas bem pouco. Eu precisava sair do quarto, achava que esse era o primeiro passo: sair do quarto. Então fui para a sala e me sentei no sofá, encarando a televisão desligada e meu café da manhã que não consegui comer já frio em cima da mesa.
Eu precisava me apoiar. Fui ao quarto e peguei o romance de Clarice que eu estava lendo. Porque se eu ia ter que enfrentar a terrível verdade de que eu não me bastava no mundo, eu faria isso com Clarice nas mãos.
Voltei e me sentei novamente no sofá encarando a TV.
Os minutos passavam e eu continuava pensando que não poderia sair de casa. O que era isso? Era como medo. Mas medo de quê eu não sei. Não era bem medo, mas era. Era um medo e era eu mesmo, rodando dentro da minha cabeça, rodando dentro da sala, rodando em frente à TV.
Saí correndo novamente para o banheiro e vomitei mais duas vezes. Eu não aguentaria ficar na sala mais. Então voltei ao quarto. Como pode alguém não se aguentar?
O dia já estava completamente claro nesse momento. Olhei para Clarice nas mãos e aceitei minha derrota diária. Despido, me deitei na cama e aceitei a derrota. A derrota do sono, a derrota do espírito, a derrota da consciência e do dia. 

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