Resenha: The leftovers, de Tom Perrota

Nós nos acomodamos muito fácil. Há vinte anos um smartphone era tecnologia de filme futurista de ficção científica e hoje é artigo mais que necessário, é quase vital para algumas pessoas. Eu já me perguntei diversas vezes: o que aconteceria se algo extremamente necessário a nossa sobrevivência simplesmente sumisse ou acabasse? Ao me fazer essa pergunta eu estou pensando em coisas como energia elétrica, por exemplo. Mas alguns autores levam essa discussão a outro nível, como José Saramago em “Ensaio sobre a cegueira” e Tom Perrota em “The leftovers” (ou “Os deixados pra trás”, primeiro nome da tradução brasileira antes da estreia da série na HBO baseada no livro). 

Nesse livro, o enredo gira em torno de um evento misterioso: o sumiço repentino de milhões de pessoas ao redor do mundo, que não deixaram nenhum traço do seu paradeiro. Antes de continuar essa resenha eu quero deixar um aviso: se você se interessou pelo enredo e quer saber o que aconteceu com essas pessoas que sumiram, perca essa esperança. Como o nome do livro deixa claro, os personagens principais não são aqueles que sumiram no evento que ficou popularmente chamado de Partida Repentina, mas sim os que sobraram, os deixados pra trás. 

Um conjunto de personagens traumatizados que tenta retomar sua vida ou se afogar na eterna ausência de alguém que partiu. O trauma, essa é a chave do livro. Imagine estar ao lado da sua mãe no supermercado, virar-se para pegar um produto na prateleira mais alta e quando for colocá-lo no carrinho perceber que ela não está mais ali. Ela não morreu, ela não fugiu sem avisar para onde iria. Ela sumiu no ar. 

Alguns dos personagens do livro tentam iniciar o processo de luto, necessário para consolidar a cura do trauma da perda de alguém. Mas como ficar de luto por alguém que não morreu? Como esperar a volta de alguém que não se sabe se ainda está vivo? Os personagens se veem presos nessa espiral que os faz reviver o trauma da partida de seus familiares, amigos, vizinhos. 

Os personagens principais são a família Garvey. Kevin e Laurie, o pai e a mãe, Jill e Tom, os filhos. Nenhum deles perdeu alguém extremamente significativo, exceto por Jill que foi testemunha ocular da partida de uma amiga de quem não era tão próxima assim. 

Todo o mundo muda de alguma forma. Seja pelo surgimento de um grupo de indivíduos chamados os Remanescentes Culpados, que se atribuem o papel de lembrar a todos de que o mundo que eles conheciam já não existe mais e que não se pode retomar a vida como se nada tivesse acontecido; seja pelo aparecimento de um profeta que alega tirar a dor das pessoas que convivem com o peso daqueles que partiram, apesar de desenvolver métodos e dogmas questionáveis; ou ainda pelos traumas individuais, que atingem níveis de complexidade fortes, principalmente com a personagem Nora, que tem que lidar com a partida repentina do marido e dois filhos poucos momentos depois de ter desejado que todos eles sumissem.

Os Remanescentes Culpados, cena da série da HBO
A família Garvey vai se ramificar em todos esses segmentos, cada um a seu modo, lidando com traumas que às vezes podem estar associados com a partida repentina ou não. 

Ah, a associação desse evento com o arrebatamento bíblico é óbvia, mas uma série de implicações vem disso e que na verdade só servem para intensificar ainda mais a dor e a culpa de alguns personagens. 

Fiz uma resenha de certa forma superficial, por não querer entrar em detalhes já que a chave do livro é a complexidade emocional e psicológica. 

O roteiro foi adaptado para televisão pela HBO em uma série que já conta com duas temporadas e tem produção executiva do próprio autor e que expande o universo dos acontecimentos a outros níveis, outros personagens e explorando ainda mais as complexidades envolvendo o caráter religioso do evento, o fanatismo religioso, o trauma generalizado e a dificuldade de reconstruir uma sociedade que não consegue explicar para onde essas pessoas foram. Indico tanto o livro quanto a série, pois os dois têm diferenças significativas.

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