[RESENHA] “Meia-noite e vinte” de Daniel Galera

No limiar do ano 2000, o mundo tinha dois possíveis destinos: sofrer com o bug do milênio toda a desgraça que o avanço tecnológico traria, ou gozar das vantagens que esse super desenvolvimento tecnológico proporcionaria a nossas vidas. O mais irônico é perceber que as duas alternativas na verdade não eram alternativas, nem opostas, apenas dois fatores de um mesmo fenômeno: a nossa evolução tecnológica; e que vivemos exatamente na linha divisória, com os braços abertos tentando nos equilibrar, um no caos e outro na evolução.

Os personagens de “Meia-noite e vinte” eram jovens em 1999. Antero, Aurora, Emiliano e Andrei curtiam uma espécie de fama na Internet graças a um fanzine virtual chamado Orangotango, que fazia sucesso online com textos literários, manifestos e experiências artísticas. Envoltos em festas, popularidade, juventude, sexo e drogas, os quatro amigos publicam o e-zine em um curto período de tempo, logo quando a vida os chama a se integrar à sociedade, sempre maior e nem sempre melhor que nós.

O livro começa com Aurora lendo no Twitter a notícia da morte de Andrei, apelidado de Duque pelos amigos, em um roubo de celular, com um tiro na cabeça. Isso impacta Aurora de uma forma profunda, fortalecendo nela a sensação de que o mundo está acabando (não em um sentido catastrófico, mas como se os dias fizessem parte de um lento processo de degradação da humanidade), representando aquela primeira postura que comentei no primeiro parágrafo desta resenha.

Ela encontra os outros amigos no enterro. Emiliano, um homem gay, jornalista free-lancer, que tem um fetiche envolvendo sexo e violência. Antero, o espírito-livre do grupo na época do fanzine, que se tornou um publicitário de sucesso, trabalhando para as grandes empresas e metido em um casamento ao qual ele não faz questão de manter fidelidade. E por último a própria Aurora, que decidiu seguir carreira acadêmica, mas esbarrou em um professor que lhe nutre um desafeto e a reprovou no exame de qualificação para a tese.

Todos se sentem chocados com a morte de Andrei, o único que seguiu carreira literária e manteve sua vida o mais privada possível. Cai nas mãos de Emiliano a tarefa de escrever uma biografia sobre o jovem misterioso e talentoso escritor.

O livro retrata de quatro pontos de vista diferentes o futuro da chamada geração Y, aquela que cresceu com a Internet, a revolucionária. Mostra como a vida exige de nós tanta energia que quase não sobra nada para os nossos desejos. E ainda por cima explora as facetas da nossa nova vida online, questionando a relação entre memória e digital. Quando morremos, o que sobra de nós na Internet faz parte da nossa vida? Quando morremos, o que se faz com nossos dados e rastros que ficam na rede? De certa forma, a Internet permite que nossa memória e presença permaneçam ativas em contas de usuários e fotos de perfil. No livro de Galera, isso é fundamental para o desenlace da trama.


Sou leitor ávido de literatura contemporânea e nunca vi um livro refletir sobre nossa época e nossas subjetividades com tanta fidelidade. Já li outros livros de Daniel Galera e sempre gostei, mas fiquei com a impressão de que precisava de algo mais. Eu precisava de “Meia-noite e vinte”.


Meia-noite e vinte, de Daniel Galera, publicado pela Companhia das letras em 2016.

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